A diminuição da energia livre como um indicador de mudança espontânea aplicam-se a qualquer tipo de processo em pressão e temperatura constantes, e é muito útil para estudar a espontaneidade das reações químicas.
A energia livre de Gibbs de reação
A função termodinâmica usada como critério de espontaneidade para uma reação química é a energia livre de Gibbs de reação, ΔGr, definida como a diferença entre as energias livres de Gibbs molares, Gm, de produtos e reagentes: ΔGr=produtos∑nGm−reagentes∑nGm Nessa expressão, os valores de n são os coeficientes estequiométricos da equação química. Por exemplo, para a formação da amônia: NX2(g)+3HX2(g)2NHX3(g) A energia livre de Gibbs de reação é: ΔGr=2Gm,NHX3−Gm,NX2−3Gm,HX2 Como as energias livres de Gibbs mudam quando a reação prossegue, devido à mudança da pressão parcial de cada componente, a energia livre de Gibbs da reação também muda. Para uma determinada composição
Se ΔGr<0 a reação direta é espontânea.
Se ΔGr>0 a reação inversa é espontânea.
A energia livre de Gibbs padrão de reação, ΔGr∘, é definida da mesma forma que a energia livre de Gibbs da reação, mas em termos das energias livres de Gibbs molares padrão dos reagentes e produtos. ΔGr∘=produtos∑nGm∘−reagentes∑nGm∘ Como no estado padrão a pressão parcial das substância gasosas é 1bar, a energia livre de Gibbs padrão de reação é uma quantidade fixa para uma dada reação e não varia quando a reação prossegue:
ΔGr∘ é fixo para uma dada reação e temperatura e, por isso, não varia durante a reação.
ΔGr depende da composição da mistura de reação; logo, varia quando a reação prossegue.
A mesma técnica usada para encontrar a entalpia padrão de reação pode ser empregada, em que uma entalpia padrão de formação, ΔHf∘, é atribuída a cada componente. De modo análogo, a energia livre de Gibbs padrão de formação, ΔGf∘ é a energia livre de Gibbs padrão de reação por mol de formação de um composto a partir de seus elementos na forma mais estável.
Exemplo 3C.3.1
Cálculo da energia livre padrão de formação a partir de dados de entalpia e entropia
Calcule a energia livre padrão de formação de HI(g) em 25°C.
IX2(s)
HX2(s)
HI(g)
ΔHf∘/molkJ
+26,5
Sm∘/K⋅molJ
116
131
207
Etapa 2.
Escreva a reação de formação do HI(g)
21HX2(g)+21IX2(s)HI(g)
Etapa 3.
Calcule a entalpia padrão de formação.
ΔHf∘=+26,5kJ⋅mol−1
Etapa 4.
Calcule a entropia padrão de formação.
De ΔSr∘=∑produtosnSm∘−∑reagentesnSm∘,ΔSf∘=Sm,HI(g)∘−21Sm,HX2(g)∘−21Sm,IX2(g)∘ logo, ΔSf∘={(207)−21(131)−21(116)}K⋅molJ=+83,5J⋅K−1⋅mol−1
Etapa 5.
Calcule a energia livre padrão de reação.
De ΔG=ΔH−TΔS,ΔGf∘=(+26,5molkJ)−(298K)×(+83,5⋅10−3K⋅molkJ)=1,62kJ⋅mol−1
A energia livre de Gibbs padrão de formação de um composto, em uma dada temperatura, é uma medida de sua estabilidade em relação a seus elementos em condições padrão. Se ΔGf∘<0 em uma certa temperatura, o composto tem energia livre menor do que seus elementos puros e os elementos tendem espontaneamente a formar o composto nesta temperatura. Dizemos que o composto é mais estável nas condições padrão do que seus elementos. Se ΔGf∘>0, a energia livre do composto é maior do que a de seus elementos e o composto tende espontaneamente a se decompor nos elementos puros. Neste caso, dizemos que os elementos são “mais estáveis” do que o composto puro. Por exemplo, a energia livre padrão de formação do benzeno é +124kJ⋅mol−1, em 25°C, e o benzeno é instável em relação a seus elementos em condições padrão em 25°C. Logo:
Um composto termodinamicamente estável é um composto cuja energia livre de Gibbs padrão de formação é negativa (a água é um exemplo).
Um composto termodinamicamente instável é um composto cuja energia livre de Gibbs padrão de formação é positiva (o benzeno é um exemplo).
A tendência de decomposição pode não ser observada na prática porque a decomposição pode ser muito lenta. Na verdade, o benzeno pode ser guardado por um tempo infinito sem que ocorra decomposição. Substâncias termodinamicamente instáveis, mas que sobrevivem por longos períodos, são chamadas de não lábeis ou, até mesmo, de inertes. Por exemplo, o benzeno é termodinamicamente instável, mas é não lábil. Substâncias que se decompõem ou reagem rapidamente são chamadas de lábeis. A maior parte dos radicais é lábil. É importante perceber a diferença entre estabilidade e labilidade:
Estável e instável são termos que se referem à tendência termodinâmica de uma substância em se decompor em seus elementos.
Lábil, não lábil e inerte são termos que se referem à velocidade na qual essa tendência é concretizada.
Assim como as entalpias padrão de formação podem ser combinadas para obter entalpias padrão de reação, é possível combinar energias livres de Gibbs padrão de formação para obter energias livres de Gibbs padrão de reação: ΔGr∘=produtos∑nΔGf∘−reagentes∑nΔGf∘ em que n são os coeficientes estequiométricos.
Exemplo 3C.3.2
Cálculo da energia livre padrão de uma reação
A amônia tem estabilidade por tempo indefinido no ar. Um agrônomo estuda a estabilidade da amônia no solo e precisa saber se o composto se mantém estável porque sua oxidação não é espontânea ou porque ela é espontânea, mas muito lenta. 4NHX3(g)+5OX2(g)4NO(g)+6HX2O(l)
Calcule a energia livre padrão de oxidação da amônia.
Classifique a reação quanto à espontaneidade.
NHX3(g)
NO(g)
HX2O(g)
ΔGf∘/molkJ
−16,5
+86,5
−229
Etapa 2.
Calcule a energia livre padrão de reação.
De ΔGr∘=∑produtosnΔGf∘−∑reagentesnΔGf∘,ΔGr∘=4ΔGf,NO(g)∘−6ΔGf,HX2O(g)∘−4ΔGf,NHX3(g)∘−5ΔGf,OX2(g)∘ logo, ΔGr∘={4(86,5)+6(−229)−4(−16,5)−5(0)}molkJ=−962kJ⋅mol−1
Como a energia livre de padrão é negativa, a combustão da amônia é espontânea em 25°C em condições padrão.
As energias livres de Gibbs padrão de formação são usadas no cálculo das energias livres de Gibbs padrão de reação.
O trabalho de não expansão
A variação de energia livre de Gibbs que acompanha um processo permite predizer o trabalho máximo de não expansão que um processo pode realizar em temperatura e pressão constantes. Em outras palavras, a energia livre de Gibbs é uma medida da energia que está livre para realizar o trabalho de não expansão (daí seu nome, energia livre). O trabalho de não expansão, we, é qualquer tipo de trabalho que não seja devido à expansão contra uma pressão e inclui o trabalho elétrico e o trabalho mecânico. O trabalho de não expansão também inclui o trabalho de atividade muscular, o trabalho envolvido na ligação dos amino-ácidos para formar as moléculas de proteínas e o trabalho de enviar sinais nervosos através dos neurônios. Assim, o conhecimento das variações na energia livre é fundamental para a compreensão da bioenergética, o desenvolvimento e a utilização da energia nas células vivas.
Demonstração 3C.3.1
Relação entre a energia livre o trabalho de não expansão
Em temperatura constante, a variação de energia livre é: ΔG=ΔH−TΔS Use a definição de entalpia, H=U+PV, para expressar a variação de energia livre em pressão constante em termos da variação de energia interna e do volume: ΔG=ΔU+PΔV−TΔS Agora, use a primeira lei da termodinâmica, ΔU=Q−W, e obtenha: ΔG=Q−W+PΔV−TΔS Para que um processo realize o máximo de trabalho, ele precisa ocorrer de forma reversível. Para uma mudança reversível, esta equação assume a forma: ΔG=Qrev−Wrev+PΔV−TΔS Agora, como ΔS=Qrev/T: ΔG=−Wrev+PΔV Neste ponto, observe que o sistema pode realizar trabalho tanto de expansão como de não expansão: Wrev=Wrev, ne+Wrev, exp=Wrev, ne+PΔV Substituindo Wrev por essa expressão: ΔG=−Wrev, ne Como Wrev, ne é a quantidade máxima de trabalho de não expansão que o sistema pode realizar (porque foi atingido reversivelmente), obtém-se ΔG=−Wmax, ne
Em temperatura e pressão constantes: ΔG=−Wmax, ne Essa importante relação diz que, se a variação de energia livre de um processo que acontece em temperatura e pressão constantes é conhecida, então você imediatamente sabe quanto trabalho de não expansão ele pode realizar. A Eq. 3C.3.4 também é importante na prática, porque permite considerar as relações energéticas dos processos biológicos de forma quantitativa.
Por exemplo, a energia livre padrão da oxidação da glicose: CX6HX12OX6(s)+6OX2(g)6COX2(g)+6HX2O(l) é −2879kJ⋅mol−1. Portanto, em 1bar, o trabalho máximo de não expansão que se pode obter de 1mol de CX6HX12OX6, isto é, 180g de glicose, é 2879kJ. Como cerca de 17kJ de trabalho precisam ser realizados para formar um mol de ligações peptídicas (uma ligação entre amino-ácidos) em uma proteína, a oxidação de 180g de glicose pode ser usada para formar cerca de 170mol dessas ligações. Em outras palavras, a oxidação de uma molécula de glicose é necessária para formar cerca de 170 ligações peptídicas. Na prática, a biossíntese ocorre indiretamente, há perdas de energia, e somente 10 ligações peptídicas se formam. Uma proteína típica tem várias centenas de ligações peptídicas, então, muitas moléculas de glicose precisam ser sacrificadas para construir uma molécula de proteína.
A variação de energia livre de Gibbs de um processo é igual ao trabalho máximo de não expansão que o sistema pode realizar em temperatura e pressão constantes.
A espontaneidade e a temperatura
As entalpias dos reagentes e produtos dependem da temperatura, mas a diferença entre as variações de entalpia varia pouco com a temperatura. O mesmo vale para a entropia. Como resultado, os valores de ΔH∘ e ΔS∘ não variam muito com a temperatura. Entretanto, ΔG∘ depende da temperatura e pode mudar de sinal quando a temperatura se altera. Temos de considerar quatro casos (Tab. 3C.3.1):
Tabela 3C.3.1
Critérios para espontaneidade
ΔH∘
ΔS∘
Espontâneo
−
+
Sempre
+
−
Nunca
−
−
Se T<ΔH/ΔS
+
+
Se T>ΔH/ΔS
Para uma reação exotérmica (ΔH∘<0) com uma entropia de reação negativa (ΔS∘<0), −TΔS∘ contribui como termo positivo para ΔG∘. Em temperaturas elevadas, TΔS∘ prevalece sobre ΔH∘, e ΔG∘ é positivo (e a reação inversa, a decomposição dos produtos puros, é espontânea). Em temperaturas baixas, ΔH∘ prevalece sobre −TΔS∘ e, por isso, ΔG∘ é negativo (e a formação de produtos é espontânea). A temperatura na qual ΔG∘ muda de sinal é T=ΔH∘/ΔS∘.
Para uma reação endotérmica (ΔH∘>0) com uma entropia de reação positiva (ΔS∘>0), o inverso é verdadeiro. Neste caso, ΔG∘ é positivo em temperaturas baixas, mas pode tornar-se negativa quando a temperatura cresce e TΔS∘ supera ΔH∘. A formação de produtos a partir dos reagentes puros torna-se espontânea quando a temperatura é suficientemente alta. Na reação exotérmica, a temperatura na qual ΔG∘ muda de sinal é T=ΔH∘/ΔS∘.
Para uma reação endotérmica (ΔH∘>0) com uma entropia de reação negativa (ΔS∘<0), ΔG∘>0 em todas as temperaturas, e a reação direta não é espontânea qualquer que seja a temperatura porque as entropias do sistema e da vizinhança diminuem durante o processo.
Para uma reação exotérmica (ΔH∘<0) com uma entropia de reação positiva (ΔS∘>0), ΔG∘<0 e a formação de produtos a partir dos reagentes puros é espontânea em qualquer temperatura porque as entropias do sistema e da vizinhança aumentam durante o processo.
Exemplo 3C.3.3
Cálculo da temperatura na qual uma reação torna-se espontânea
A cal é produzida a partir do carbonato de cálcio: CaCOX3(s)CaO(s)+COX2(g) Para reduzir a quantidade de calor que deve ser fornecida, os engenheiros precisam descobrir a menor temperatura em que as reações são espontâneas.
Calcule a temperatura mínima na qual a reação é espontânea.
CaCOX3(s)
CaO(s)
COX2(g)
ΔHf∘/molkJ
−1210
−635
−394
Sm∘/K⋅molJ
93
40
214
Etapa 2.
Calcule a entalpia padrão de reação.
De ΔHr∘=∑produtosnΔHf∘−∑reagentesnΔHf∘ΔHr∘=ΔHf,COX2(g)∘+ΔHf,CaO(s)∘−ΔHf,CaCOX3(s)∘ logo, ΔHr∘={(−394)+(−635)−(−1210)}molkJ=+181kJ⋅mol−1
Etapa 3.
Calcule a entropia padrão de reação.
De ΔSr∘=∑produtosnSm∘−∑reagentesnSm∘ΔSr∘=Sm,COX2(g)∘+Sm,CaO(s)∘−Sm,CaCOX3(s)∘ logo, ΔSr∘={(214)+(40)−(93)}K⋅molJ=+161J⋅K−1⋅mol−1
Etapa 4.
Calcule a temperatura na qual a energia livre de reação torna-se negativa.
De ΔG=ΔH−TΔS=0,T=ΔSΔH logo, T=(161K⋅molJ)(181⋅103molJ)=1120K
A energia livre de Gibbs cresce com a temperatura em reações em que ΔSr∘ é negativo e decresce com a temperatura em reações em que ΔSr∘ é positivo.