Além de fornecer energia para dispositivos móveis, as células galvânicas têm uma grande variedade de aplicações. Por exemplo, na química elas são usadas para determinar as constantes de equilíbrio. Na medicina, são úteis para monitorar a concentração de íons como NaX+\ce{Na^+}, KX+\ce{K^+} e CaX2+\ce{Ca^{2+}} no sangue.

Os potenciais padrão e as constantes de equilíbrio

Uma das aplicações mais úteis dos potenciais padrão é a predição das constantes de equilíbrio a partir de dados eletroquímicos. A energia livre de Gibbs padrão de reação, ΔGr\Delta G_\mathrm{r}^\circ (o rr significa o uso da convenção molar), relaciona-se à constante de equilíbrio da reação por ΔGr=RTlnK\Delta G_\mathrm{r}^\circ = -RT \ln K. Vimos que a energia livre de Gibbs padrão de reação relaciona-se ao potencial padrão de uma célula galvânica por ΔGr=nrFΔEceˊlula\Delta G_\mathrm{r}^\circ = -n_\mathrm{r} F\Delta E_\text{célula}^\circ, em que nrn_\mathrm{r} é um número puro. As duas equações são combinadas para dar nrFΔEceˊlula=RTlnK(1a) n_\mathrm{r} F\Delta E_\text{célula}^\circ = RT \ln K \tag{1a} Essa equação pode ser rearranjada para expressar a constante de equilíbrio a partir do potencial padrão da célula: lnK=nrFΔEceˊlulaRT(1b) \ln K = \dfrac{ n_\mathrm{r} F\Delta E_\text{célula}^\circ }{ RT } \tag{1b}

Atenção

Como a magnitude de KK aumenta exponencialmente com EceˊlulaE_\text{célula}^\circ,

  • Uma reação com EceˊlulaE_\text{célula}^\circ positivo tem K1K \gg 1.
  • Uma reação com EceˊlulaE_\text{célula}^\circ negativo tem K1K \ll 1.

Como EceˊlulaE_\text{célula}^\circ pode ser calculado a partir dos potenciais padrão, também é possível calcular a constante de equilíbrio de qualquer reação que possa ser expressa em termos de duas semi-reações. Esta reação não precisa ser uma reação redox.

Exemplo 3L.2.1
Cálculo da constante de equilíbrio de uma reação a partir do potencial de célula

Considere os potenciais padrão a 25 °C\pu{25 \degree C}. AgCl(s)+eXAg(s)+ClX(aq)E=+0,2 VAgX+(s)+eXAg(s)E=+0,8 V \begin{aligned} \ce{ AgCl(s) + e^- &-> Ag(s) + Cl^-(aq) } && E^\circ = \pu{+0,2 V} \\ \ce{ Ag^+(s) + e^- &-> Ag(s) } && E^\circ = \pu{+0,8 V} \end{aligned}

Calcule o produto de solubilidade do AgCl\ce{AgCl} a 25 °C\pu{25 \degree C}.

Etapa 2. Escreva a reação de interesse como uma composição das reações fornecidas.

ΔGsol=ΔGAgCl/Ag,ClXΔGAgX+/Ag \Delta G_\mathrm{sol} = \Delta G_{\ce{AgCl/Ag,Cl^-}}^\circ - \Delta G_{\ce{Ag^+/Ag}}^\circ

Etapa 3. De ΔGsol=RTlnKps\Delta G_\mathrm{sol}^\circ = -RT\ln K_\mathrm{ps} e ΔGr=nrFE\Delta G_\mathrm{r}^\circ = -n_\mathrm{r}FE^\circ:

RTlnKps=FEAgCl/Ag,ClX+FEAgX+/Ag -RT\ln K_\mathrm{ps} = -FE_{\ce{AgCl/Ag,Cl^-}}^\circ + FE_{\ce{Ag^+/Ag}}^\circ Dividida ambos os lados por F-F para obter RTFlnKps=EAgCl/Ag,ClXEAgX+/Ag \dfrac{RT}{F} \ln K_\mathrm{ps} = E_{\ce{AgCl/Ag,Cl^-}}^\circ - E_{\ce{Ag^+/Ag}}^\circ Como (RT/F)ln10=0,06 V(RT/F) \ln 10 = \pu{0,06 V} a 25 °C\pu{25 \degree C}, 0,06 V×logKps=(+0,2 V)(+0,8 V) \pu{0,06 V} \times \log K_\mathrm{ps} = (\pu{+0,2 V}) - (\pu{+0,8 V}) Assim, logKps=10\log K_\mathrm{ps} = - 10 e Kps=11010\fancyboxed{ K_\mathrm{ps} = \pu{1e-10} }

A constante de equilíbrio de uma reação pode ser calculada a partir dos potenciais padrão pela combinação de equações das semi-reações para dar a reação de célula de interesse e determinar o potencial padrão de célula correspondente.

A equação de Nernst

À medida que uma reação prossegue em direção ao equilíbrio, as concentrações dos reagentes e produtos se alteram e ΔGr\Delta G_\mathrm{r} se aproxima de zero. Portanto, quando os reagentes são consumidos em uma célula eletroquímica de trabalho, o potencial de célula também decresce até chegar a zero. Uma bateria descarregada é uma bateria em que a reação da célula atingiu o equilíbrio. No equilíbrio, uma célula gera diferença de potencial zero entre os eletrodos, e a reação não pode mais executar trabalho. Para entender quantitativamente esse comportamento, é preciso saber como o potencial de célula varia conforme a concentração das espécies na célula.

Demonstração 3L.2.1
Como isso é feito?

Para descobrir como o potencial de célula depende da concentração, lembre da expressão para a relação entre a energia livre de Gibbs de reação e a composição: ΔGr=ΔGr+RTlnQ \Delta G_\mathrm{r} = \Delta G_\mathrm{r}^\circ + RT \ln Q em que QQ é o quociente de reação para a reação de célula. Como ΔGr=nrFΔEceˊlula\Delta G_\mathrm{r} = -n_\mathrm{r} F\Delta E_\text{célula} e ΔGr=nrFΔEceˊlula\Delta G_\mathrm{r}^\circ = -n_\mathrm{r} F\Delta E_\text{célula}^\circ, conclui-se Eceˊlula=EceˊlulaRTnrFlnQ \fancyboxed{ E_\text{célula} = E_\text{célula}^\circ - \dfrac{RT}{n_\mathrm{r}F} \ln Q }

A equação da dependência do potencial de célula com a concentração, que acabamos de demonstrar, Eceˊlula=EceˊlulaRTnrFlnQ E_\text{célula} = E_\text{célula}^\circ - \dfrac{RT}{n_\mathrm{r}F} \ln Q é chamada de equação de Nernst, em homenagem ao eletroquímico alemão Walther Nernst, que a obteve pela primeira vez. Em 298 K\pu{298 K}, RT/F=0,026 VRT/F = \pu{0,026 V}, logo nessa temperatura a equação de Nernst toma a forma Eceˊlula=Eceˊlula0,026 VnrlnQ E_\text{célula} = E_\text{célula}^\circ - \dfrac{ \pu{0,026 V} }{n_\mathrm{r}} \ln Q É conveniente, às vezes, usar essa equação com logaritmos comuns. Para isso, usamos a relação lnx=ln10×logx=2,3logx\ln x = \ln 10 \times \log x = \pu{2,3} \log x. Em 298 K\pu{298 K}, Eceˊlula=EceˊlulaRTln10nrFlogQ=Eceˊlula0,059 VnrlogQ \begin{aligned} E_\text{célula} = E_\text{célula}^\circ - \dfrac{ RT\ln 10 }{n_\mathrm{r}F} \log Q \\ = E_\text{célula}^\circ - \dfrac{ \pu{0,059 V} }{n_\mathrm{r}} \log Q \end{aligned}

A equação de Nernst é muito utilizada para estimar os potenciais de célula em condições diferentes do padrão. Ela é também usada em biologia para estimar a diferença de potencial entre membranas de células biológicas, como as dos neurônios.

Exemplo 3L.2.2
Cálulo do potencial de célula usando a equação de Nernst

Considere uma célula de Daniell a 25 °C\pu{25 \degree C}, Zn(s)  ZnX2+(aq)  CuX2+(aq)  Cu(s) \ce{ Zn(s) | Zn^{2+}(aq) || Cu^{2+}(aq) | Cu(s) } na qual a concentração de íons ZnX2+\ce{Zn^2+} é 0,1 M\pu{0,1 M} e a de íons CuX2+\ce{Cu^2+} é 0,001 M\pu{0,001 M}.

Etapa 2. Calcule EceˊlulaE_\text{célula}^\circ.

De Eceˊlula=EcatodoEanodoE^\circ_\text{célula} = E^\circ_\text{catodo} - E^\circ_\text{anodo}, Eceˊlula=(+0,34 V)(0,76 V)=+1,10 V E^\circ_\text{célula} = (\pu{+0,34 V}) - (\pu{-0,76 V}) = \pu{+1,10 V}

Etapa 3. Da equação de Nernst:

Eceˊlula=EceˊlulaRT2Fln[ZnX2+][CuX2+]=1,10 V0,06V2log0,10,001=+1,04 V \begin{aligned} E_\text{célula} &= E^\circ_\text{célula} - \dfrac{RT}{2F} \ln \dfrac{[\ce{Zn^{2+}}]}{[\ce{Cu^{2+}}]} \\ &= \pu{1,10 V} - \dfrac{0,06 V}{2} \log \dfrac{\pu{0,1}}{\pu{0,001}} = \fancyboxed{ \pu{+1,04 V} } \end{aligned}

Outra aplicação importante da equação de Nernst é a medida da concentração. Em uma célula de concentração, as duas semi-células são idênticas, a não ser pela concentração, que é diferente. Em células como essas, não há tendência à mudança quando as duas concentrações são iguais (como acontece quando elas estão no estado padrão), logo Eceˊlula=0E_\text{célula}^\circ = 0. Portanto, em 25 °C\pu{25 \degree C}, o potencial que corresponde à reação de célula é relacionado a QQ por Eceˊlula=0,06 VnrlogQ E_\text{célula} = -\dfrac{ \pu{0,06 V} }{ n_\mathrm{r} } \log Q Por exemplo, uma célula de concentração com dois eletrodos AgX+/Ag\ce{Ag^+/Ag} é Ag(s)  AgX+(aq,E)  AgX+(aq,D)  Ag(s) \ce{ Ag(s) | Ag^+(aq,E) || Ag^+(aq,D) | Ag(s) } A reação da célula tem nr=1n_\mathrm{r} = 1 e Q=[AgX+]E/[AgX+]DQ = [\ce{Ag^+}]_\mathrm{E}/[\ce{Ag^+}]_\mathrm{D}.

Exemplo 3L.2.3
Cálculo de concentração usando a equação de Nernst

Cada compartimento de eletrodo de uma célula galvânica contém um eletrodo de prata e 10 mL\pu{10 mL} de uma solução 0,1 M\pu{0,1 M} em nitrato de prata. Os compartimentos estão ligados por uma ponte salina.

São adicionados 10 mL\pu{10 mL} de uma solução 0,1 M\pu{0,1 M} em cloreto de sódio ao compartimento da esquerda. Quase toda a prata precipita como cloreto de prata, mas um pouco permanece em solução. O potencial da célula é +0,42 V\pu{+0,42 V}.

Calcule a concentração de AgX+\ce{Ag+} na solução saturada.

Etapa 2. Da equação de Nernst.

Eceˊlula=0,06 V1log[AgX+]E[AgX+]D E_\text{célula} = -\dfrac{\pu{0,06 V}}{1} \log \dfrac{ [\ce{Ag^+}]_\mathrm{E} }{ [\ce{Ag^+}]_\mathrm{D} } Logo [AgX+]E=[AgX+]D×10Eceˊlula/0,06 V=0,1 M×10(+0,42 V)/0,06 V=10 nM \begin{aligned} [\ce{Ag^+}]_\mathrm{E} &= [\ce{Ag^+}]_\mathrm{D} \times 10^{ E_\text{célula} / \pu{0,06 V} } \\ &= \pu{0,1 M} \times 10^{ -(\pu{+0,42 V}) / \pu{0,06 V} } = \fancyboxed{ \pu{10 nM} } \end{aligned}

A variação do potencial de célula com a composição é expressa pela equação de Nernst,

Os eletrodos seletivos para íons

Uma aplicação importante da equação de Nernst é a medida do pH (e, a partir do pH, a medida das constantes de acidez). O pH de uma solução pode ser medido eletroquimicamente com um aparelho chamado de medidor de pH. O instrumento usa uma célula com um eletrodo sensível à concentração de HX3OX+\ce{H3O+}. O outro eletrodo tem potencial fixo e serve de referência. Um eletrodo sensível à concentração de um íon em particular é chamado de eletrodo seletivo para íons.

Exemplo 3L.2.4
Cálculo do pH de uma solução de ácido fraco a partir de dados eletroquímicos

É preparada uma solução 0,1 M\pu{0,1 M} de um ácido fraco. Uma combinação que pode ser utilizada para medir o pH é mergulhar na solução um eletrodo de hidrogênio ligado por uma ponte salina a um eletrodo de calomelano saturado (ECS). Hg(l)  HgX2ClX2(s)  ClX(aq,sat) Esat=+0,24 V \ce{ Hg(l) | Hg2Cl2(s) | Cl^-(aq, sat) || } \quad E_\mathrm{sat} = \pu{+0,24 V} Quando a pressão do gás hidrogênio é 1 bar\pu{1 bar}, o potencial da célula é +0,54 V\pu{+0,54 V}.

Calcule o pH da solução.

Etapa 2. Escreva a equação global da célula.

HgX2ClX2(s)+HX2(g)2HX+(aq)+2Hg(l)+2ClX(aq) \ce{ Hg2Cl2(s) + H2(g) -> 2 H^+(aq) + 2 Hg(l) + 2 Cl^-(aq) }

Etapa 3. Aplique a equação de Nernst.

Eceˊlula=EceˊlulaRT2Fln([HX+]2[ClX]2) E_\text{célula} = E_\text{célula}^\circ - \dfrac{RT}{2F} \ln \left( [\ce{H^+}]^2 [\ce{Cl^-}]^2 \right) Aplique ln(ab)=lna+lnb\ln(ab) = \ln a + \ln b e lna2=2lna\ln a^2 = 2 \ln a para obter Eceˊlula=EceˊlulaRTFln[ClX]EsatRTFln[HX+] E_\text{célula} = \overbrace{ E_\text{célula}^\circ - \dfrac{RT}{F} \ln [\ce{Cl^-}] }^{ E_\mathrm{sat} } - \dfrac{RT}{F} \ln [\ce{H^+}] Por fim, como (RT/F)ln10=0,06 V(RT/F) \ln 10 = \pu{0,06 V} em 25 °C\pu{25 \degree C}, +0,54 V=(+0,24 V)+0,06 V×pH \pu{+0,54 V} = (\pu{+0,24 V}) + \pu{0,06 V} \times \mathrm{pH} Logo pH=5\fancyboxed{ \mathrm{pH} = 5 }

O eletrodo de vidro, um bulbo de vidro fino contendo um eletrólito, é muito mais fácil de usar do que o eletrodo de hidrogênio. Seu potencial varia linearmente com o pH da solução que está na parte externa do bulbo de vidro. Com frequência, existe um eletrodo de referência embutido na sonda que estabelece o contato com a solução de teste através de uma ponte salina em miniatura. Um medidor de pH, portanto, geralmente contém uma sonda, chamada de eletrodo de combinação, que forma uma célula eletroquímica completa ao ser mergulhada em uma solução. Hoje, o eletrodo de referência mais comumente usado em potenciômetros é o eletrodo Ag/AgCl\ce{Ag/AgCl} saturado, Ag(s)  AgCl(s)  Cl(aq,sat) Esat=+0,20 V \ce{ Ag(s) | AgCl(s) | Cl-(aq, sat) || } \quad E_\mathrm{sat} = \pu{+0,20 V} O medidor é calibrado com uma solução tampão de pH conhecido e o potencial medido é automaticamente transformado no pH da solução, que pode ser, então, lido em um visor.

Os eletrodos disponíveis no comércio, usados nos medidores de pX, são sensíveis a outros íons, como NaX+\ce{Na^+}, CaX2+\ce{Ca^{2+}}, NHX4X+\ce{NH4^+}, CNX\ce{CN^-} e SX2\ce{S^{2-}}. Eles são usados para monitorar a concentração de íons no sangue, em processos industriais e no controle da poluição.

O pH de uma solução e as concentrações de íons podem ser medidos com o auxílio de um eletrodo.