Um aspecto da ciência que você encontrará com frequência é que uma compreensão mais profunda da matéria vem da percepção de como as propriedades físicas resultam do comportamento individual de átomos e moléculas. A termodinâmica trata das propriedades da matéria vista a olho nu, mas os seus conhecimentos sobre elas aumentam consideravelmente quando você entender a origem destas propriedades em termos atômicos.

A formação de íons

O Tópico 1D apresenta os conceitos de energia de ionização, II, e afinidade eletrônica, EaeE_\mathrm{ae}. Estas duas propriedades, bastante relacionadas, são usadas na termodinâmica. A entalpia de ionização, ΔHion\Delta H_\mathrm{ion}, é a variação da entalpia padrão por mol de átomos por conta da perda de um elétron. Para o elemento X\ce{X}: X(g)XX+(g)+eX(g)ΔHion \ce{ X(g) -> X^+(g) + e^-(g) } \quad \Delta H_\mathrm{ion} A entalpia do ganho de elétrons, ΔHge\Delta H_\mathrm{ge}, é a quantidade análoga para o ganho de elétrons. X(g)+eX(g)XX(g)ΔHge \ce{ X(g) + e^-(g) -> X^-(g) } \quad \Delta H_\mathrm{ge} Observe que a entalpia do ganho de elétrons e a afinidade eletrônica (como definida no Tópico 1D) têm sinais opostos. Logo, a entalpia do ganho de elétrons é negativa se o ganho de elétrons libera energia (como em qualquer processo exotérmico).

As tendências dos valores acompanham as da energia de ionização e da afinidade eletrônica, como mostrado no Tópico 1D. Logo, os átomos dos elementos alcalinos têm entalpias de ionização baixas (positivas), ao passo que os átomos dos halogênios têm valores fortemente negativos de entalpia de ganho de elétrons.

As entalpias de ionização e de ganho de elétrons são as versões termodinâmicas da energia de ionização e da afinidade eletrônica.

O ciclo de Born-Haber

Para um determinado sólido, a diferença de entalpia molar entre o sólido e um gás de íons muito separados é chamada de entalpia de rede do sólido, ΔHrede\Delta H_\mathrm{rede}: XY(s)XX+(g)+YX(g)ΔHrede \ce{ XY(s) -> X^+(g) + Y^-(g) } \quad \Delta H_\mathrm{rede} A entalpia de rede pode ser identificada com o calor necessário para vaporizar o sólido em íons muito espaçados sob pressão constante. Quanto maior a entalpia de rede, mais calor é necessário.

A entalpia de rede de um sólido normalmente não pode ser medida de modo direto. Porém, como a entalpia é uma função de estado, ela pode ser obtida indiretamente pela combinação de medidas. O procedimento usa um ciclo de Born-Haber, um caminho fechado de etapas, uma das quais é a formação da rede de um sólido a partir de um gás de íons. No ciclo, os elementos são separados em átomos que são ionizados. O gás de íons gerado forma o sólido iônico. Por fim, os elementos são formados novamente a partir do sólido iônico. Só a entalpia da rede, o negativo da entalpia da formação do sólido iônico a partir do gás de íons, é desconhecida. A soma das variações de entalpia no ciclo de Born-Haber completo é zero, porque a entalpia do sistema deve ser a mesma no início e no fim do ciclo.

Exemplo 3X.1.1
Cálculo da entalpia de rede no ciclo de Born-Haber

Considere as reações: K(s)K(g)ΔHsub=+89 kJmolClX2(g)2Cl(g)ΔHL=+242 kJmolK(g)KX+(g)+eXΔHion=+418 kJmolCl(g)+eX(g)ClX(g)ΔHge=349 kJmolK(s)+12ClX2(g)KCl(s)ΔHf=437 kJmol \begin{aligned} \ce{ K(s) &-> K(g) } && \Delta H_\mathrm{sub}^\circ = \pu{+89 kJ//mol} \\ \ce{ Cl2(g) &-> 2 Cl(g) } && \Delta H_\mathrm{L}^\circ = \pu{+242 kJ//mol} \\ \ce{ K(g) &-> K^+(g) + e^- } && \Delta H_\mathrm{ion}^\circ = \pu{+418 kJ//mol} \\ \ce{ Cl(g) + e^-(g) &-> Cl^-(g) } && \Delta H_\mathrm{ge}^\circ = \pu{-349 kJ//mol} \\ \ce{ K(s) + 1/2 Cl2(g) &-> KCl(s) } && \Delta H_\mathrm{f}^\circ = \pu{-437 kJ//mol} \end{aligned}

Calcule a entalpia de rede do cloreto de potássio.

Etapa 2. Escreva a reação de interesse como uma composição das reações fornecidas.

K(s)K(g)12ClX2(g)Cl(g)K(g)KX+(g)+eXCl(g)+eX(g)ClX(g)KCl(s)K(s)+12ClX2(g)KCl(s)KX+(g)+ClX(g) \begin{aligned} \ce{ \cancel{\ce{K(s)}} &-> \cancel{\ce{K(g)}} } \\ \ce{ \cancel{\ce{1/2 Cl2(g)}} &-> \cancel{\ce{Cl(g)}} } \\ \ce{ \cancel{\ce{K(g)}} &-> K^+(g) + \cancel{\ce{e^-}} } \\ \ce{ \cancel{\ce{Cl(g)}} + \cancel{\ce{e^-(g)}} &-> Cl^-(g) } \\ \ce{ KCl(s) &-> \cancel{\ce{K(s)}} + \cancel{\ce{1/2 Cl2(g)}} } \\[1ex] \hline \\[-2ex] \ce{ KCl(s) &-> K^+(g) + Cl^-(g) } \end{aligned}

Etapa 3. Calcule a entalpia de rede.

ΔHrede={(89)+12(242)+(418)+(349)(437)}kJmol=+716 kJmol1 \begin{aligned} \Delta H^\circ_\mathrm{rede} &= \Big\{ (\pu{89}) + \dfrac{1}{2}(\pu{242}) + (\pu{418}) + (\pu{-349}) - (\pu{-437}) \Big\} \, \pu{kJ//mol} \\ &= \boxed{ \pu{+716 kJ.mol-1} } \end{aligned}

A energia de interação entre os íons em um sólido é dada pela entalpia de rede, que pode ser determinada com um ciclo de Born‑Haber.

As entalpias de ligação

A energia de uma ligação química é medida pela entalpia de ligação, ΔHL\Delta H_\mathrm{L}, a diferença entre as entalpias padrão molares de uma molécula XY\ce{X-Y} (por exemplo, HX3COH\ce{H3C-OH}) e de seus fragmentos X\ce{X} e Y\ce{Y} (como XX22CHX3\ce{^.CH3} e XX22OH\ce{^.OH}) na fase gás: XY(g)X(g)+Y(g)ΔHL \ce{ X-Y(g) -> X(g) + Y(g) } \quad \Delta H_\mathrm{L} Enquanto a entalpia de rede é igual ao calor necessário (sob pressão constante) para separar um mol de uma substância iônica em seus íons na fase gás, a entalpia de ligação é igual ao calor necessário para quebrar um tipo específico de ligação sob pressão constante. Por exemplo, a entalpia de ligação de HX2\ce{H2} é obtida da equação termoquímica HX2(g)H(g)+H(g)ΔHL,HX2=+436 kJmol \ce{ H2(g) -> H(g) + H(g) } \quad \Delta H_{\mathrm{L}, \ce{H2}} = \pu{+436 kJ//mol} Todas as entalpias de ligação são positivas, porque é necessário fornecer calor para quebrar uma ligação. Em outras palavras:

  • A quebra de uma ligação é sempre endotérmica e a formação de uma ligação é sempre exotérmica.

A Tab. 3X.1.1 lista as entalpias de ligação de algumas moléculas diatômicas.

Tabela 3X.1.1
Entalpias de ligação de moléculas diatômicas
MoléculaΔHL/kJmol\Delta H_\mathrm{L}/\pu{kJ//mol}MoléculaΔHL/kJmol\Delta H_\mathrm{L}/\pu{kJ//mol}
HX2\ce{H2}436\pu{436}OX2\ce{O2}496\pu{496}
NX2\ce{N2}944\pu{944}CO\ce{CO}1074\pu{1074}
FX2\ce{F2}158\pu{158}HF\ce{HF}565\pu{565}
ClX2\ce{Cl2}242\pu{242}HCl\ce{HCl}431\pu{431}
BrX2\ce{Br2}193\pu{193}HBr\ce{HBr}366\pu{366}
IX2\ce{I2}151\pu{151}HI\ce{HI}299\pu{299}

Em uma molécula poliatômica, todos os átomos da molécula exercem atração — por meio de suas eletronegatividades — sobre todos os elétrons da molécula. Como resultado, a energia de ligação em um determinado par de átomos varia pouco de um composto a outro. Por exemplo, a entalpia de ligação de uma ligação OH\ce{O-H} na água (492 kJmol1\pu{492 kJ.mol-1}), é diferente da mesma ligação no metanol, CHX3OH\ce{CH3OH}, (437 kJmol1\pu{437 kJ.mol-1}). Entretanto, essas variações de entalpia de ligação não são muito grandes, de modo que a entalpia de ligação média, que também é representada por ΔHL\Delta H_\mathrm{L}, serve como guia para a energia de uma ligação de qualquer molécula que contém a ligação (Tab. 3X.1.2).

Tabela 3X.1.2
Entalpias de ligação médias
LigaçãoΔHL/kJmol\Delta H_\mathrm{L}/\pu{kJ//mol}LigaçãoΔHL/kJmol\Delta H_\mathrm{L}/\pu{kJ//mol}
CH\ce{C-H}412\pu{412}CI\ce{C-I}238\pu{238}
CC\ce{C-C}348\pu{348}NH\ce{N-H}388\pu{388}
C=C\ce{C=C}612\pu{612}NN\ce{N-N}163\pu{163}
C---C\ce{C\bond{~-}C}518\pu{518}N=N\ce{N=N}409\pu{409}
CC\ce{C#C}837\pu{837}NO\ce{N-O}210\pu{210}
CO\ce{C-O}360\pu{360}N=O\ce{N=O}630\pu{630}
C=O\ce{C=O}743\pu{743}NF\ce{N-F}270\pu{270}
CN\ce{C-N}305\pu{305}NCl\ce{N-Cl}200\pu{200}
CF\ce{C-F}484\pu{484}OH\ce{O-H}463\pu{463}
CCl\ce{C-Cl}338\pu{338}OO\ce{O-O}157\pu{157}
CBr\ce{C-Br}276\pu{276}

As tendências das energias de ligação mostradas nas tabelas são explicadas, em parte, pelas estruturas de Lewis das moléculas. Vejamos, por exemplo, as moléculas diatômicas de nitrogênio, oxigênio e flúor. Observe a diminuição da energia de ligação quando a multiplicidade da ligação decresce, de 3, em NX2\ce{N2}, para 1, em FX2\ce{F2}. A ligação tripla do nitrogênio é a origem de sua inércia química. Uma ligação múltipla é, sem dúvida, sempre muito mais forte do que uma ligação simples, porque mais elétrons unem os átomos. Uma ligação tripla entre dois átomos é sempre mais forte do que uma ligação dupla entre os mesmos átomos, e uma ligação dupla é sempre mais forte do que uma ligação simples. Entretanto, uma ligação dupla entre dois átomos de carbono não duas vezes mais forte do que uma ligação simples, e uma ligação tripla é muito menos forte do que três vezes uma ligação simples. Pode-se ver, por exemplo, que a entalpia de ligação média de uma ligação dupla C=C\ce{C=C} é 612 kJmol1\pu{612 kJ.mol-1}, mas são necessários 696 kJmol1\pu{696 kJ.mol-1} para quebrar duas ligações simples CC\ce{C-C}. Da mesma forma, a energia média de dissociação de uma ligação tripla CC\ce{C#C} é 837 kJmol1\pu{837 kJ.mol-1}, mas consomem-se 1044 kJmol1\pu{1044 kJ.mol-1} para quebrar três ligações simples CC\ce{C-C}. A origem dessas diferenças está, em parte, nas repulsões entre os pares de elétrons de uma ligação múltipla que fazem cada par envolvido não ser tão efetivo na ligação como um par de elétrons de uma ligação simples.

Os valores da Tab. 3X.1.2 mostram como a ressonância afeta as energias de ligação. Por exemplo, a energia de uma ligação carbono-carbono do benzeno é intermediária entre as das ligações simples e duplas. A ressonância distribui o caráter de ligação múltipla por todas as ligações e, como resultado, as ligações simples são reforçadas, e as ligações duplas, enfraquecidas. O efeito total geral é a estabilização da molécula.

A presença de pares isolados pode influenciar as energias das ligações. Os pares isolados repelem-se e, se eles estão em átomos vizinhos, a repulsão pode enfraquecer a ligação. A repulsão entre pares isolados ajuda a explicar por que a ligação em FX2\ce{F2} é mais fraca do que em HX2\ce{H2}: esta última molécula não tem pares isolados.

As variações de energia de ligação correlacionam-se com as variações de raios atômicos. Se os núcleos dos átomos ligados não podem se aproximar do par que fica entre eles, a ligação dos dois átomos é fraca. Por exemplo, as energias de ligação dos halogenetos de hidrogênio decrescem de HF\ce{HF} para HI\ce{HI}, como se vê na Tab. 3X.1.1. A energia da ligação entre o hidrogênio e um elemento do Grupo 14 também decresce no grupo de cima para baixo. Esse enfraquecimento da ligação correlaciona-se com a diminuição da estabilidade dos hidretos de cima para baixo no grupo. O metano, CHX4\ce{CH4}, pode ser mantido indefinidamente no ar na temperatura normal. O silano, SiHX4\ce{SiH4}, se inflama em contato com o ar. O estanano, SnHX4\ce{SnH4}, decompõe-se em estanho e hidrogênio. O plumbano, PbHX4\ce{PbH4}, nunca foi preparado, exceto, talvez, em quantidades mínimas (traços).

As entalpias de reação podem ser estimadas usando as entalpias médias de ligação para determinar a energia total necessária para quebrar as ligações dos reagentes e formar as ligações dos produtos. Na prática, só as ligações que sofrem alterações são levadas em conta. Como as entalpias de ligação referem-se às substâncias na fase gás, todas elas devem ser gases ou ser convertidas à fase gás.

As energias relativas das ligações são importantes para a compreensão de como a energia é usada nos organismos para fazer funcionar nossos cérebros e músculos. Por exemplo, o trifosfato de adenosina, ATP, é encontrado em todas as células vivas. A parte trifosfato dessa molécula é uma cadeia de três grupos fosfato. Um dos grupos fosfato é removido em uma reação com água. A ligação PO\ce{P-O} do ATP requer apenas 276 kJmo1\pu{276 kJ.mo-1} para quebrar, e a nova ligação PO\ce{P-O} formada em HX2POX4X\ce{H2PO4^-} libera 350 kJmol1\pu{350 kJ.mol-1} quando se forma. O resultado é que a conversão de ATP a difosfato de adenosina, ADP, na reação ATP(aq)+HX2O(l)ADP(aq)+HX2POX4X(aq) \ce{ ATP(aq) + H2O(l) -> ADP(aq) + H2PO4^-(aq) } pode liberar energia que é usada para a realização de determinados processos nas células.

Muito relacionada à energia de uma ligação é sua rigidez (a resistência ao alongamento e à compressão), com as ligações fortes sendo normalmente mais rígidas do que as ligações fracas. A rigidez das ligações é medida por espectroscopia de infravermelho (IV) e é usada para identificar compostos.

Exemplo 3X.1.2
Cálculo da entalpia de reação usando as entalpias de ligação médias

O gás propeno reage com bromo líquido para formar 1,2-dibromopropano líquido: CHX3CH=CHX2(g)+BrX2(l)CHX3CHBrCHX2Br(l) \ce{ CH3CH=CH2(g) + Br2(l) -> CH3CHBrCH2Br(l) } As entalpias de vaporização do 1,2-dibromopropano e do bromo são 36 kJmol1\pu{36 kJ.mol-1} e 30 kJmol1\pu{30 kJ.mol-1}, respectivamente.

Calcule a entalpia da reação.

C=C\ce{C=C}BrBr\ce{Br-Br}CC\ce{C-C}CBr\ce{C-Br}
ΔHL/kJmol\Delta H_\mathrm{L}/\pu{kJ//mol}612\pu{612}193\pu{193}348\pu{348}276\pu{276}
Etapa 2. Calcule a entalpia de dissociação das ligações quebradas nos reagentes.

Ligações quebradas: 1×C=C+1×BrBr1\times\ce{C=C} + 1\times\ce{Br-Br}. ΔH1={(612)+(193)}kJmol=+805 kJmol1 \Delta H_1^\circ = \Big\{ (\pu{612}) + (\pu{193}) \Big\}\pu{kJ//mol} = \pu{+805 kJ.mol-1}

Etapa 3. Calcule a entalpia de formação das ligações formadas nos produtos.

Ligações formadas: 1×CC+2×CBr1\times\ce{C-C} + 2\times\ce{C-Br}. ΔH2={(612)+2(276)}kJmol=900 kJmol1 \Delta H_2^\circ = -\Big\{ (\pu{612}) + 2(\pu{276}) \Big\}\pu{kJ//mol} = \pu{-900 kJ.mol-1}

Etapa 4. Calcule a entalpia de reação.

De ΔHr=ΔH1+ΔH2+ΔHvap,BrX2ΔHvap,CX3HX6BrX2\Delta H_\mathrm{r}^\circ = \Delta H_1^\circ + \Delta H_2^\circ + \Delta H_{\mathrm{vap}, \ce{Br2}}^\circ - \Delta H_{\mathrm{vap}, \ce{C3H6Br2}}^\circ ΔHr={(805)+(900)+(30)(36)}kJmol=101 kJmol1 \begin{aligned} \Delta H^\circ_\mathrm{r} &= -\Big\{ (\pu{805}) + (\pu{-900}) + (\pu{30}) - (\pu{36}) \Big\}\pu{kJ//mol} \\ &= \boxed{ \pu{-101 kJ.mol-1} } \end{aligned}

A entalpia de ligação média é a média da variação de entalpia que acompanha a dissociação de um determinado tipo de ligação.